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As três Marias

Uma era feita de neve, a pele branca, quase translúcida. Os olhos claros, azuis como o céu sem nuvens, escondidos atrás da armação do óculos de aros transparentes, os cabelos lisos e castanhos caíam pelos ombros sem dificuldade. Era magra e um pouco mais alta do que a maioria das de sua idade. Era quieta. Tão quieta que sua respiração, quando ouvida, chamava a atenção por ser um dos únicos sons que ela costumeiramente emitia. Sua voz era baixa e tímida, voz que a boca rosada e os lábios finos emolduravam. Quando estava sozinha pensava em coisas doces. Fazia doces. Mas quando se irritava (isso seria descoberto mais tarde), sua calma se transformava em um frenesi de palavras desconexas, difíceis de entender. Quase insanas. A pele alva ficava vermelha e os olhos claros se mexiam com rapidez, parecendo que sairiam das órbitas. Tinha cheiro de casa, simplicidade e aconchego.Era a primeira.

A outra era feita da tarde, aquela hora em que o céu começa a escurecer, a cor do jambo quando está maduro, os olhos como duas pedras ônix, castanho escuro com traços de ouro. Talvez não fosse ouro, somente luz. Ela era feita também de luz. A voz grossa e as sobrancelhas arqueadas, intimidantes, quase amedrontadoras. Olhava fixo e não desviava o olhar. Nunca. Sabia o que dizer, quando dizer e como dizer. Os cabelos cacheados teimavam em não se ajeitarem da forma como ela queria, negros como piche, compridos e perfeitos. Tinha aroma de segurança, proteção e maternidade. Era a segunda.

A terceira chegou em uma tarde de final de chuva, quase março. Era feita um pouco das duas. A pele tão clara quanto a da primeira, os olhos de amêndoas feito os da segunda. Tinha medo mas não dizia. Olhava para a frente, para cima, por isso caiu logo na primeira vez. Ninguém a ajudou a se levantar. Na verdade ela não precisava, sabia fazê-lo sozinha. As duas a olhavam de longe, ainda sem a reconhecerem. Não tinha a calma da primeira, muito menos sua voz baixa. Falava muito e sua voz era estridente. Não levantava as sobrancelhas como a segunda. Mas seu rosto dizia claramente o que se passava em seu coração. E ela disfarçava.
Era pequena e roliça, ainda sem saber muito bem lidar com o corpo recém formado de menina moça. Os cabelos eram uma mistura dos da feita de neve com os da feita de tarde: compridos e ondulados, caindo pelos ombros como cascatas cor de chocolate.
Tinha cheiro de mato molhado de chuva, frescor e liberdade. Tinha cheiro de solidão também.

Um dia, as três se olharam e realmente se viram. Não se conheceram, apenas se reconheceram. Como o quebra-cabeça que espera pela última peça.

No início elas prometeram: Amigas para sempre.
Promessas nunca são fáceis de cumprir.
Foram separadas várias vezes. Primeiro de sala. Depois de escola. Depois de cidade, de estado.

A primeira conheceu cedo o amor. Riu, chorou, desistiu e resolveu viver do seu jeito. Aprendeu a falar alto, gesticular muito, saiu de sua redoma e foi viver. Experimentou um pouco de tudo, do doce ao amargo, do seco ao molhado, do bom ao ruim. Dos tempos de antes guardou a doçura apenas para as outras duas, afinal, continuava sendo a primeira. Continuava a avermelhar como antes e a falar palavras ininteligíveis nos momentos de fúria. Decidiu descobrir os mistérios da vida, realmente. Como ela se formava, como crescia e se desenvolvia. Estudava plantas e animais já que os seres humanos eram complicados demais para ela. Aprendeu os mistérios dos mares e da terra, do céu e daquilo que não se vê quando se olha. A primeira virou bióloga. Quando resolveu que queria de novo o amor ele apareceu loiro e magro, com olhos e jeito de menino, voz baixa e mente aguçada.

A segunda cresceu em meio à música, festas e barulho. Cresceu também com responsabilidades. Era dela o macarrão com salsicha para a irmã mais nova, a hora do banho, do uniforme, da escola. Eram para ela as reclamações, os choros e os risos. Era dela o colo sempre pronto, a voz sempre amiga, a palavra mais certa.
Cansada da mesmice viajou para uma terra onde a música não pára nunca, onde todos os dias eram de festas e as noites também. Viajou para uma terra onde o sol nasce cedo e tudo acontecia depois da praia. E levou toda a família para lá. Foram tempos tristes para as outras duas. Foram tempos incertos para a segunda. Quando partiu tinha o cabelo curto, como os meninos usam. Um dia ela voltou, não para a cidade natal ,mas para a cidade que nunca dorme, pertinho da outra. Os cabelos já estavam maiores, o sorriso também. Voltou quando a primeira estava vivendo os primeiros anos de liberdade e a terceira tinha o coração destroçado. Chegou com a alegria que lhe era peculiar, os olhos escuros cheio de entusiasmo e as mãos sempre prontas a estender. Quando conheceu o amor viu que ele era alto, moreno e falava com o sotaque de quem nasceu nas terras sem praias, diferentes da sua. A segunda tornou-se mãe.

Não fora a primeira vez que a terceira chorara. Na verdade, nem havia sido a pior das vezes. Ela havia crescido junto com as outras, mesmo quando elas estavam separadas. Em seu caminho encontrou tristezas e angústias, uma casa que não era um lar, novas companhias, paixões e o amor maior que ela já havia sentido até então. Resolveu que queria correr o mundo, mesmo que só em sua imaginação. Aprendeu que a verdade dói, mas é a melhor forma de enfrentar a vida. Decidiu ser verdadeira sempre, principalmente consigo mesma.
Dizia não acreditar no amor, esse bichinho traiçoeiro que serve apenas para iludir, mas descobriu, no ano em que a segunda voltou, que ele existia, tinha olhos verdes, pele clara e sardas.
Descobriu também que ele era gentil e generoso, respeitava e gostava das outras duas.
Escreveu seus dias, noites e sonhos. Contou às outras e a ele o que ia em seu coração. Aprendeu a dividir o pão e os sentimentos. Aprendeu a confiar e a alimentar os sonhos de outras pessoas, a espalhar a verdade e a palavra, a não ignorar e aceitar injustiças, aprendeu que o pior pecado é a omissão e o pior castigo é o silêncio. A terceira se transformou em jornalista.

Encontros, telefonemas, telepatias, cartas, choros, risos e quinze anos depois as três continuam a cumprir a promessa. Agora planejam a festa de seus trinta anos, já que nasceram com poucos meses de diferença.
O palco foi idéia da segunda, se vestir de drag queen da terceira e a primeira, depois de ficar vermelha, virar os olhos e falar palavras desconexas teve que concordar.

Promessas nunca são fáceis de cumprir...

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