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A Negociação

Eles estavam sentados em uma mesa no canto mais reservado do estabelecimento. O lugar era um bar simples  mas limpo, pouca iluminação, apenas o suficiente para enxergar o rosto de alguém que se sentasse perto. Claro que eles não estavam perto demais.
Ela usava um vestido de linho branco um pouco acima do joelho; elegante e discreto para a ocasião. A cor neutra da roupa contrastava com o vermelho escuro dos cabelos. 
Ele usava terno e gravata, mostrando que era um homem de negócios. 
_Você é menos assustador do que eu imaginava. A Ruiva realmente esperava alguém mais sombrio do que aquele homem de cabelos negros e olhos acinzentados. 
_ Você é mais bonita do que eu me lembrava. -  Ele sabia quem ela era, mas, realmente andava tão ocupado com os negócios que, às vezes, deixava passar alguns detalhes. 
_ Mas, eu preferia seu cabelo na cor natural. Castanho não é? A raiz já está aparecendo - disse O Homem e em seguida se arrependeu. Apesar das circunstâncias não era educado de sua parte fazer esse tipo de comentário. 
_ Eu ia retocar antes do Natal, no entanto, você sabe...
_ É, eu sei, muito trabalho nessa época não?
_ É, muito trabalho. -  Ela falou e pegou o copo de cerveja que estava à sua frente. Tomou um gole e colocou-o de novo sobre a mesa.  Realmente não era sua bebida favorita, mas, ele também bebia isso e ela pensou que seria educado acompanhá-lo. Ela respirou fundo e então, disse o que queria.
_ Tenho compromissos a cumprir e quero terminar meu trabalho. Preciso de mais tempo.
Ele já estava acostumado a esse tipo de pedido. Pessoas querendo negociar prazos, algumas com motivos reais para não terem terminado seu serviço, outras insistindo em permanecer apegadas a situações já finalizadas. Tempo é o que todos queriam, mas, quem é que o tinha afinal? A mulher à sua frente, no entanto era um caso especial. Um talento promissor, de enorme potencial, que cometera erros, alguns bem significativos, deixara passar muitas oportunidades e, agora, queria negociar.
_ Você sabe que não sou adepto a esse tipo de negociação não é? Mas, não posso negar que você sempre me pareceu alguém com talentos especiais, pena que os desperdiçou muitas, muitas vezes.
A Ruiva tomou mais um gole de cerveja. Ele tinha razão. Claro que havia feito escolhas corretas, no entanto nos últimos tempos seu desempenho não era dos melhores. Dessa vez  deixou que a bebida descesse em maior quantidade, afinal, sabia que essa era uma negociação difícil, muita coisa estava em jogo e ela não queria parecer desesperada. Precisava tirar o nó que se formara em sua garganta. Antes que ela pudesse continuar, ele falou novamente:
_ Digamos que eu lhe conceda um prazo maior. De quanto tempo estamos falando?
_ Cinquenta.
Um sorriso irônico apareceu no canto da boca do homem de terno.
_ Ambiciosa, admiro a coragem, mas, cinquenta está fora de cogitação. Com o tempo que você já teve, não acha que está pedindo muito? E para quê? Para fazer, ou melhor, não fazer o que deveria, de novo? Eu lhe dei trinta e cinco e você desperdiçou grande parte desse prazo. E agora me pede mais do que o dobro? Acho que está me subestimando.
_ Você fala como se eu não tivesse feito nada do que tinha de fazer. Há outros que tiveram um prazo muito maior do que o meu e fizeram muito mais besteiras do que fiz.
_ Poucos deles tinham o seu potencial. Eu e não apenas eu, tinha muitos planos para você. Planos que, um por um, teve a capacidade de desfazer.
Agora quem precisava de um gole era ele. Apesar de sua fama de inflexível e do medo que despertava nas pessoas com as quais se relacionava ele não era assim tão mal e detestava, verdadeiramente, ser rude. Além do mais, gostava da Ruiva.
_ Falei com seu marido - continuou ele vendo o rosto da mulher à sua frente ficar quase tão vermelho quanto os cabelos.
_ Não quero você perto dele. Muito menos das crianças.
_ Eu já imaginava, mas precisava saber algumas coisas, fazer perguntas que me ajudariam a resolver sobre você.
_ Quero eles fora da negociação. Quero que você fique longe de todos eles. Entendeu?- Assim que as palavras saíram de sua boca ela se arrependeu, afinal, que exigências podia fazer?
_ Muito bem. Eu lhe dou trinta e cinco. Durante esse tempo não a incomodarei. Não chegarei perto nem de você, nem de seu marido, muito menos de seus filhos. Ao final do prazo, voltamos a conversar. Se o trabalho estiver sendo bem feito ou terminado lhe dou uma gratificação. É pegar ou largar.


***

 Pedro caminhou pelos corredores do hospital automaticamente e dirigiu-se à cafeteria. Não dormia há três dias. Odiava hospitais, como a maioria das pessoas, mas não sairia daquele lugar enquanto não soubesse que a esposa ficaria bem. Precisava manter-se acordado e precisava, mais do que nunca de café.
_ Há momentos em que uma xícara pode salvar o mundo não é?
A voz ao seu lado vinha de um homem de terno e gravata, cabelos negros e olhos cinzentos. Ele não estava abatido, mas parecia cansado apesar da vestimenta impecável.
_ Ah sim, há momentos em que faz milagres.
_ Eu sei. Está acompanhando alguém? Um familiar?
_ Minha esposa...
_ Espero que não seja nada grave.
_ Eu também gostaria, mas infelizmente o quadro dela é muito delicado.
_ Desculpe a intromissão, mas, ela teve...?
_ Foi um acidente de carro. Na véspera de Natal. Ana sempre gostou das festas de final de ano, mas  nos últimos tempos estava tão ocupada com o trabalho que não conseguia nem mesmo comprar os presentes para nossos filhos.
Pedro não sabia porque começara a falar, mas estava lhe fazendo bem e talvez, pensou ele, conversar com um estranho era o que precisava para colocar os pensamentos em ordem.
_ Ela é advogada. Nos conhecemos na faculdade, eu fazia engenharia. Ana era cheia de planos, queria ir para a promotoria, pensava em abrir uma ONG para ajudar mulheres e crianças vítimas de violência.
_ E ela conseguiu?
O interesse do homem parecia genuíno e Pedro resolveu continuar.
_ Não. Quer dizer, ela sempre diz que ainda vai fazer isso, mas às vezes eu duvidava. No segundo ano da faculdade ela conseguiu um estágio em um grande escritório que atende as maiores empresas do país. Quando terminou o curso foi efetivada e começou a subir na empresa. No começo pensamos que seria temporário, só até nos firmarmos financeiramente. O salário era bom e foi aumentando junto com as responsabilidades, claro. Nos casamos, vieram os filhos, gastos, escola... bom, você deve saber, não é?
_ É, sei sim.
_  Então é fácil entender. Ela agora chefia todo o escritório é vice diretora da empresa, tem um excelente salário e nenhuma vida pessoal.
_ Você não parece feliz com a situação.
_ E não estou, quer dizer, estava. No dia do acidente tivemos uma briga, falamos em divórcio, as crianças escutaram. Temos três filhos, um menino e duas meninas. Claro que não falei a sério. Ela saiu de casa com a desculpa de que precisava providenciar algumas coisas para a ceia e ir ao salão, retocar a raiz dos cabelos.  Há pouco mais de três meses ela os pintou de ruivo. Ela sempre quis, mas, dizia que podia pegar mal no trabalho. Quando ela resolveu mudar a cor fiquei feliz, finalmente estava fazendo algo por ela e não pela empresa, então, apesar de gostar da cor natural, apoiei. Achei que fosse o início de uma mudança. Na verdade acho que era. Talvez ela só precisasse de mais tempo.  Meia hora depois que Ana saiu de casa  eu soube do acidente.
_ Sinto muito.
_ Obrigado e me desculpe, acho que acabei falando demais. É que não consigo falar com ninguém da família sobre o que aconteceu. Não consigo dizer a ninguém, muito menos às crianças que ela talvez... talvez não acorde.
_ Quantos anos ela tem?
_ Trinta e cinco.
_ Muito jovem não?
_ É, muito. Mas não tão jovem quanto o rapaz que causou o acidente. Ele tinha vinte anos e...
_ Morreu
_ Como você sabe?
_ Imaginei. Com certeza esse rapaz fez muito mais besteiras na vida do que a sua mulher.
_ Não sei, só sei que ele estava embriagado, mas, sinceramente, só quero que a Ana fique boa. Não me importa se ela vai trabalhar nesse ritmo louco o resto da vida. O pouco tempo que ela tiver para dedicar a mim e às crianças é melhor do que não tê-la conosco.
_ Eu tenho um palpite de que ela vai ter mais algum tempo. Que vocês todos vão ter um bom tempo juntos. Eu apostaria em mais uns trinta e cinco anos de tranquilidade. Quem sabe dessa vez ela não consegue montar a tal ONG? Quem sabe ela não consegue fazer a diferença?
_Seria bom, seria muito bom... Espero que seu palpite esteja certo.  Desculpe, acabei não me apresentando, meu nome é Pedro e o seu?
O homem de terno olhou no relógio e seus olhos ficaram ainda mais cinzentos.
_ Desculpe Pedro, preciso fazer uma visita ainda. Acho que não nos encontraremos tão cedo, então, boa sorte.

***

Enquanto voltava para o quarto Pedro tentava se lembrar se já havia visto aquele homem antes e porque suas palavras pareciam ser tão confiáveis. Quando entrou no corredor que dava para o quarto da esposa viu que o médico e duas enfermeiras se dirigiam para lá. Seu coração começou a bater forte e ele pediu a Deus que não fosse o que estava pensando. 
Entrou no quarto com as pernas tremendo e lágrimas nos olhos que se transformaram em um largo sorriso assim que ultrapassou o beiral da porta.
- Ana! 
Sua mulher estava acordada, tentando sentar na cama do hospital. Parecia sonolenta, mas, seus olhos tinham  um brilho fora do comum. 
 - Ela acordou há poucos minutos e parece bem, a pressão está boa e os batimentos também. Ela só sente um pouco de dor de cabeça, no local da cirurgia, o que é perfeitamente normal. 
- Oi amor.
- Oi amor.

***

- Eu pego. Trinta e cinco é justo não é? O mesmo tempo que tive até agora.
- E espero que dessa vez você faça as escolhas certas.
- Eu farei. 
- E parabéns. Não é todo dia que alguém negocia com a Morte e sai ganhando. 


Comentários

Ana Silva disse…
Adoro esta história! leio e releio sem cansar!

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